quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Do Baú das Traças: Um Cabaret Para Liza (por Luiz Otávio Tal)

Bob Fosse vinha de um fracasso logo na sua estréia na direção. Charity Meu Amor, de 1969, não teve boa acolhida nem pelo grande público nem pelos críticos, apesar de alguns bons números musicais e do excelente desempenho de Shirley MacLaine. O próximo projeto tinha, então, a obrigatoriedade de alavancar bilheterias e comover o circuito da crítica, para que o diretor pudesse continuar ambicionando novos vôos. E foi exatamente o que aconteceu com Cabaret, de 1972, faturando 8 Oscars, incluindo melhor direção, melhor atriz (Liza Minnelli) e melhor ator coadjuvante (Joel Grey).

O filme é ambientado na Berlim dos anos 30, quando estava em ascensão o regime nazista. A grande maioria das canções funciona como um olhar crítico ao movimento. No entanto, todos os conflitos ideológicos são relegados em segundo plano. Todos os personagens observam a barbárie nazista sem se envolverem de fato.

Logo nos créditos iniciais, enquanto aparecem os nomes de todo o elenco, escutamos o burburinho dos boêmios que começam a chegar ao cabaré Kit Kat Club. A expectativa só vai aumentando quando a câmera se afasta, focalizando um espelho que reflete os contornos disformes de todos os presentes. Eis que surge Joel Grey, o mestre-de-cerimônias, que aqui repete o mesmo papel que anos antes fizera na Broadway. A canção de abertura funciona como uma apresentação, a fim de expor junto ao público todas as peças do xadrez. Em um close, Grey encara a câmera e diz: “olá, estranho!”, numa clara alusão de que ali todos são aceitos, de comunistas a nazistas. No cabaré, assim como em uma sala de cinema, todos os problemas são deixados de lado.

Neste contexto, Liza Minnelli é Sally Bowles, uma decadente cantora americana, que se apresenta no Kit Kat Club. A primeira imagem de Sally se dá pela fresta de uma porta entreaberta, que justifica sua famosa frase, repetida várias vezes no longa: “sou a pessoa mais estranha e extraordinária”. A energia de Liza logo toma conta da tela. Entusiasmada, mal deixa espaço para o talento de Michael York, que dá vida a Brian, um estudante gay, que chega a Berlim para prestar doutorado.

Frustrada, Sally vive em um mundo de fantasias, esperando que algum agente lhe dê uma oportunidade no show business em troca de favores sexuais. Ignorada pelo pai, um diplomata americano, vive a mentira de ter um tutor importante e ocupado. Toda esta tensão é extravasada aos berros em frente a um conjunto de linhas férreas. Aqui mais uma alusão: o som do trem que abafa a dor de Sally é semelhante ao ódio nazista que mina o sonho judeu.

O primeiro número musical de Liza acontece no palco do Kit Kat Club. Aliás, todos os números musicais acontecem dentro do cabaré, com exceção de “Tomorrow Belongs to Me”, um arrepiante hino nazista encenado em um café ao ar livre. Cantando Mein Herr, que foi composta especialmente para o filme, a estrela brilha sobre a fotografia premiada de Geoffrey Unsworth. Privilegiando as sombras, apenas o rosto de Sally é iluminado, reforçando o magnetismo de suas expressões, enquanto as dançarinas são encobertas por um refletor vermelho. A platéia, por sua vez, é engolida pela escuridão, pois na verdade somos nós os freqüentadores do cabaré.

O fato é que o filme é todo de Liza Minelli. Ela brilha do primeiro instante ao minuto final. Filha de Vincente Minnelli e Judy Garland, ela seguiu os conselhos do pai, veterano em musicais, na composição de sua personagem: cortou os cabelos de forma inusual e carregando na maquiagem ao redor dos olhos, o que ressalta a força de sua expressão facial. Liza nasceu para ser Sally Bowles. Tanto é assim que depois de Cabaret a atriz nunca mais conseguiu se reinventar, incorporando a persona da cantora decadente. Em seus filmes seguintes sempre trazia alguma característica de Sally, ora a boca suja, que profere impropérios sem o menor pudor, ora o olhar arregalado que desperta curiosidade.

O filme tem uma cena linda. Sally, após tomar banho, seduz Brian. Este, porém, a evita. Ela não aceita o descaso e a indignação fica clara em seu rosto, afinal é uma mulher atraente que desperta o desejo de toda a platéia do Kit Kat Club. Impaciente, tenta de novo seduzí-lo, ao som do jazz vindo da vitrola, e é mais uma vez deixada de lado. A frustração só é desfeita quando descobre que Brian é gay. Neste momento, uma feição de alívio toma conta do seu rosto, contudo, o envolvimento dos dois é inevitável.

Em uma trama paralela surgem Fritz Wender (Fritz Wepper) e Natalia Landauer (Marisa Berenson). Fritz é um caça-dotes alemão, que esconde sua origem judaica, no entanto, observa seus planos naufragarem ao se apaixonar pela milionária Natalia, que também é judia. Este enredo funciona a fim de costurar o clima nazista que permeia todo o filme. Para consumar seu amor Fritz precisa revelar sua identidade, tornando-se alvo do movimento. De um modo geral, o nazismo ainda era visto com ingenuidade pela população. Em determinado ponto do filme um personagem diz que aquele regime é um mal necessário, facilmente controlado, para combater os comunistas.

Após uma hora de projeção, a película perde o ritmo com a entrada em cena de Maximilian von Heune (Helmut Griem), um milionário bissexual que se envolve com Brian e Sally. O erro se deve a falta de expressividade de Griem, que destoa do afinado elenco.

O filme não mostra claramente o envolvimento entre Brian e Maximilian, até porque o homossexualismo era algo, praticamente, inexistente nas telas de cinema. Tudo é revelado por olhares e toques sutis, como na cena em que Brian segura a mão do milionário ao lhe acender o cigarro, ou quando aceita uma cigarreira de presente. O desfecho deste triângulo amoroso se dá em uma cena belíssima. Bêbados, os três se abraçam girando de maneira frenética. Os lábios dos três parecem querer se tocar, mas a câmera, sabiamente, interrompe o clímax, traduzindo uma realidade: Brian ama Heune, que ama Sally, que, por sua vez, não ama ninguém. Helmut Griem, no entanto, entra em cena tão abruptamente quanto desaparece.

Cabaret termina de modo pessimista, em virtude do futuro nada animador. Sally não está preparada para assumir responsabilidades, afinal ela é “a pessoa mais estranha e extraordinária” e como um cabaré, sempre precisa de platéias novas, que venham aplaudí-la e bajulá-la. Em uma das últimas imagens Brian caminha em direção ao trem, que o levará de volta a Londres, enquanto Sally dá as costas caminhando em direção ao espetáculo.


Ficha Técnica

Título original: Cabaret. Direção: Bob Fosse. Roteiro: Jay Presson Allen. Intérpretes: Liza Minnelli, Joel Grey, Michael York, Fritz Wepper, Marisa Berenson, Helmut Griem, Helen Vita, Ralf Wolter, Gerd Vespermann. Produção: Cy Feuer. Fotografia: Geoffrey Unsworth. Desenho de Produção: Rolf Zehetbauer. Direção de Arte: Hans Jürgen Kiebach. Figurino: Charlotte Flemming. Edição: David Bretherton

4 comentários:

Johnny M. disse...

Eu assisti Cabaret há muito tempo. Adorei o filme. Vivo cantando a música "Money make world go around".

Unknown disse...

Eu nunca ouvi falar nesse filme, mas parece ser interessante. Você tá devendo um comentário lá no meu!

www.portalespetacular.zip.net

Abraços!

Unknown disse...

Muito boa a sua crítica. Cabaret é de fato um ótimo filme, e Fosse marcou o cinema mesmo com os poucos filmes que fez.

Unknown disse...

Eu simplesmente sou apaixonada pelo filme, já assisti mais de 50 vezes e cada vez que vejo me emociono. E sem duvida o melhor musical de todos os tempos.
Imperdível, para quem tem bom gosto e sencibilidade. Joel Grey tambem está perfeito no papel de mestre de cerimonia. Falar da interpretação de Liza Minelli e chover no molhado, pois ela está incrível, nenhuma atriz faria melhor esse papel. Eu amo esse filme de paixão.